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As surpreendentes cores da seca no Cerrado


É na paisagem árida, empoeirada e retorcida do Cerrado, dominada durante o período de seca por mais de 50 tons de marrom e cinza que, surpreendentemente, o espetáculo das cores acontece. Onde só se espera ver plantas raquíticas, empalidecidas pelo clima árido e quente do Planalto Central, brotam múltiplos pontos vibrantes de amarelo, branco, roxo e cor-de-rosa rompendo a monotonia da paisagem.

Ipê amarelo (imagem: Gesner Duarte)

Ipê, Louro branco, Cega-machado, Amargosa, Caliandra, Cipó-de-ouro. Os nomes não fazem muita diferença para quem está apenas passando por elas ou parado contemplando sua beleza “fraturante”, como dizia o semioticista lituano Algirdas Greimas ao se referir a um sentimento de arrebatamento que rompe com a nossa noção de tempo e de espaço quando experimentamos o prazer de uma experiência estética ímpar diante de algum objeto ou acontecimento. Quando vivenciamos, inesperadamente, uma "fratura" estética.

São, definitivamente, “árvores fraturantes” que, nessa época do ano, perdem as folhas e ganham as flores. “Árvores de flores” seria a denominação mais justa. Tão justa quanto o outro nome popular da Cega-machado: “Pau-de-rosas”.

Cega-machado/Pau-de-rosas (imagem: Gesner Duarte)

O espetáculo improvável

Mas por que é justamente (e improvavelmente) nas condições mais adversas, com chuvas escassas, que as plantas do Cerrado explodem em flores e cores vivas, como o ipê que passa um ano inteiro como lagarta esperando, pacientemente, para virar borboleta e no momento em que a sequidão atinge o auge explode desavergonhadamente em amarelo escandaloso?

Esse fenômeno (no sentido mais completo do termo) é resultado de um processo evolutivo de milhões de anos em que a natureza ajustou, com precisão suíça, o relógio biológico das plantas do Cerrado para que elas tivessem sucesso na sua principal missão: se reproduzir e se perpetuar aqui, do lado de baixo do Equador.

As razões são várias, explica a bióloga e professora da UFMT, Maryland Sanchez. Primeiro, perder as folhas durante os meses de seca é uma maneira de as árvores economizarem água, que evapora com facilidade através das folhas durante a fotossíntese. Essa água economizada vai ajudar a planta no dispendioso trabalho de formar flores, frutos e sementes que irão garantir a reprodução das espécies. Ao mesmo tempo, florescendo na época da seca as sementes estarão maduras e prontas para germinar quando começar o período chuvoso (nos trópicos, há, na prática, apenas duas estações: a seca e a chuvosa).

"A semente precisa ser disponibilizada em um período próximo a quando vai ter água para ela”, explica Maryland. Por isso, a florada e a produção dos frutos e sementes tem que ocorrer bem antes. Em alguns casos essa semente só estará pronta para germinar na próxima estação chuvosa, dali a um ano. Ou seja, para algumas espécies a espera entre a florada e germinação que dará origem a uma nova cria é bastante longa.

Amargosa (imagem: Gesner Duarte)

Além disso, se a florada ocorresse somente no período úmido a chuva danificaria as flores, prejudicando a polinização feita pelos insetos. E as sementes que, com muita sorte, conseguissem se formar também não teriam o tempo necessário de maturação. É o tal reloginho biológico suíço agindo novamente. Aliás, falando em tempo, as plantas que produzem flores são muito antigas. Têm mais de cem milhões de anos. No processo de evolução elas tiveram mais sucesso. Começaram a surgir junto com os insetos na época em que eles estavam se diversificando. Assim, os bichinhos viraram seus parceiros e tornaram a polinização (e consequentemente a reprodução) mais eficiente.

Mas, assim como as flores vêm rapidamente, rapidamente também se vão. É um show efêmero. Para algumas espécies como a Cega-machado elas duram cerca de quinze dias apenas. Aliás, essa árvore cor-de-rosa choque que pipoca em fotos no Facebook nessa época do ano é a preferida da professora Maryland. “Plantei uma muda na porta da minha casa”, conta ela. Deve ser uma experiência de tirar o fôlego abrir o portão e dar de cara com um verdadeiro espetáculo.

O espetáculo ameaçado

Mas a florada no Cerrado é um espetáculo por enquanto condenado a ser cada vez mais raro por conta da devastação. E isso não é conversa de ecochato, não. Esse é o segundo maior bioma brasileiro. Cobria uma vastidão de mais de 2 milhões de km², desde o Maranhão até o norte do Paraná, passando por São Paulo, Minas Gerais, Mato Grosso e Goiás. Sim, nós aqui no Centro-Oeste somos legítimos filhos do Cerrado. Porém, da vegetação original restaram apenas de 5 a 10%, segundo estimativas de especialistas. A devastação veio a galope: em poucas décadas uma área desse tamanho, difícil até de imaginar, foi reduzida, em sua maioria, a um punhado de unidades de preservação.

“O cerrado foi muito neglicenciado. As florestas tropicais a gente vê acontecer, mas no caso do Cerrado foi uma devastação feita sem muito alarde. A abertura e expansão do Brasil foi baseada na derrubada dessa vegetação, que por muito tempo foi considerada sem valor, com um pensamento completamente obtuso e antropocêntrico.”, avalia a professora Maryland.

Erva-de-touro (imagem: Gesner Duarte)

Louro branco (imagem: Gesner Duarte)

O cerrado hoje está fragmentado numa matriz de pecuária e agricultura. Alguns especialistas acreditam que, no ritmo atual de destruição, a vegetação nativa desse bioma será extinta em apenas trinta anos, acabando com milhares de espécies animais e vegetais, algumas delas com potencial, inclusive, medicinal. Isso fora o impacto para o meio ambiente como um todo e para própria vida do homem nessas regiões. “É uma luta ambiental para que essas áreas sejam transformadas em unidades de conservação. Aqui mesmo na Barra, o Parque da Serra Azul só está preservado porque virou uma unidade de conservação em 1994, mas foi uma luta de muitos anos”, diz a professora.

Boa parte da vegetação do Cerrado foi derrubada para a formação de pastagens (imagem: Gesner Duarte)

Os fazendeiros têm um papel importante na preservação do Cerrado, os governantes têm o poder de manter esse bioma através da criação, aplicação e fiscalização de leis, mas e nós, cidadãos comuns, o que podemos fazer para ajudar a impedir que ele seja completamente devastado?

“Eu acho que a nossa contribuição é para o meio ambiente de uma forma geral. Todas as nossas atitudes cidadãs contribuem para o meio ambiente de forma mais ampla. Umas das questões rotineiras que a gente vive na região do Cerrado e vemos todo dia na nossa cidade são as queimadas. São hábitos culturais arraigados nas pessoas difíceis de mudar.”, lamenta a professora Maryland.

“A fiscalização não é eficiente. Basta um passeio pela cidade e você vai ver dezenas de lotes queimados. A gente vive praticamente em área de proteção ambiental, um cinturão em volta do Parque da Serra Azul ou na mata ciliar dos dois rios. Então aqui nossa responsabilidade seria maior ainda. Nossa contribuição é essa, desde as pequenas como não jogar lixo na rua, usar folhas para fazer compostagem, não colocar fogo nos resíduos. A gente implica com a sujeita das plantas, pétalas caídas ou folhas. A gente não quer ter árvore. Se eu plantar um babaçu, um coqueiro ou uma gueiroba eu vou estar fornecendo alimento para os animais típicos daqui, além de retirar CO2 da atmosfera. São pequenas atitudes que podem aumentar a conexão entre os organismos e aumentar a preservação. É preciso pensar no ambiente como um todo.”, complementa.

Jacarandá mimoso (imagem: Gesner Duarte)

Sucupira preta (imagem: Gesner Duarte)

O espetáculo se renova

A professora Maryland Sanchez é de Uberlândia-MG e veio para Barra do Garças ainda criança. Nasceu no Cerrado, cresceu no Cerrado, mora no Cerrado e pesquisa o Cerrado, diariamente, há 13 anos. Será que alguém envolvido pessoalmente e profissionalmente com esse ambiente há tanto tempo ainda se surpreende com a beleza das floradas ou olhar já está saturado?

“Nunca. Como bióloga a gente fica mais sensível para esses pequenos prazeres que a natureza nos proporciona. Eu olho para o Cerrado e vejo um ser vivo, eu acho sensacional essa mudança das fases das plantas porque é um lembrete de que aquele é um ser vivo e não meramente um objeto de decoração. Infelizmente as pessoas têm dificuldade de enxergar as plantas dessa maneira. Quando você corta um animal é mais chocante. Quando você corta uma planta a gente não se sensibiliza tanto, mas aquilo também é um ser vivo.”

Um ser vivo, colorido e, literalmente, espetacular!

Folha-de-serra (imagem: Gesner Duarte)

Imagens da capa e das galerias: Gesner Duarte

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