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Crônica: O reinado da barriguda

Não tem pra ninguém. Durante o outono é ela quem reina absoluta no Cerrado, em um espetáculo farto e generoso de dar inveja até mesmo aos ipês. E olha que fazer concorrência com a árvore símbolo do país não é pra qualquer um.

Coberta de um rosa tímido-espalhafatoso, como diria Caetano Veloso, meio bela/recatada meio desavergonhada, a paineira quando se cansa de ostentar beleza no alto das copas derrama as flores grandes no chão poeirento formando um tapete colorido em volta do tronco. “Florada farta, sinal de fortuna”, diz o ditado.

Aliás, por causa de uma protuberância no caule, característica dessa espécie, como se fosse uma barriguinha de chope turbinada, que vai ficando mais saliente com a idade (Quem nunca?), ela também é conhecida em algumas regiões como “barriguda”.

Maldade, né? A ditadura da magreza, que domina nosso imaginário, impõe padrões inalcançáveis até mesmo a elas, coitadas, que não têm absolutamente nada a ver com as nossas neuroses fitness.

A barriguinha de chope é justamente o charme da paineira, que continua lá, imponente, poderosa, dona de si e barriguda, sim, com muito orgulho. “Quem disse que precisa ser magra pra ser formosa?”, já questionava Roberto Carlos. Na verdade, essa barriguinha é um depósito natural de água que a paineira estoca para as épocas de vacas magras.

Os espinhos grossos e pontiagudos, que começam a cair por volta dos 20 anos, são um mecanismo de proteção e dão a ela um aspecto pré-histórico, rude, agressivo. Mas, não se engane, meu caro: é tudo fachada. Na verdade, a moça é mais frágil do que a gente pensa, sua madeira é mole, leve e pouco resistente, bastante vulnerável aos cupins.

Quando eu era criança, em Minas Gerais, tínhamos uma paineira gigante no fundo do quintal. Aliás, pensando bem, tenho a impressão de que todas as paineiras já nascem gigantes. Nunca vi nem soube de ninguém que tenha visto uma paineira assim pequenininha, raquiticazinha, magrelinha. É sempre um paineirão da porra!

Isso, no tempo em que as casas ainda tinham terrenos capazes de acolher as árvores. Hoje, nos cubículos que chamamos de quintais, mirrados e concretados, mal dá pra cultivar um pé de alface no vaso quanto mais um dinossauro vegetal de 20 metros de altura. Qualquer coisa que ultrapasse o nível das folhagens já é um luxo.

Agora, se quiser ver o show das barrigudas no outono a gente tem que vender um rim para colocar alguns litros de gasolina no carro e ir ao campo procura-las. Ou tentar achar alguma sobrevivente nas cidades, o que é mais difícil ainda. Com a devastação acelerada do Cerrado e a derrubada compulsiva das árvores nativas no ambiente urbano, encontrar essas espécies está ficando tão raro quanto achar passagem em promoção para Goiania na Azul.

Mas, voltando às memórias da infância, a “minha” paineira do quintal nos brindava com dois espetáculos anuais: o primeiro quando se cobria com o rosa suave das flores e o segundo quando se cobria com o branco das painas.

É que após a florada formam-se frutos grandes, recheados de uma fibra clara e sedosa envolvendo as sementes muito duras. Depois de tomar muito sol na moleira, eles racham, como algodão que dá em árvore, soltando as plumas que ajudam a dispersar as sementes. Na natureza, de cada 10 mil sementinhas apenas uma irá vingar. Parafraseando Euclides da Cunha, a barriguda é antes de tudo uma sobrevivente.

As painas voando por dias seguidos ao sabor do vento e pintando o chão de branco, como se fosse neve no Cerrado, é daquelas imagens nostálgicas que ficam gravadas na mente. “Paixão antiga sempre mexe com a gente”, ensinava Tim Maia.

Toda casa antiga, principalmente as de fazenda, tinha “trabisseiros” e edredons recheados de paina. O trabalho de catar as plumas era das crianças, claro. Trabalho quase insalubre, a bem da verdade, porque recolher baciadas de paina, levíssima, suficiente para encher vários travesseiros, embaixo do sol escaldante, era uma tarefa desumana demais para ser feita pelos adultos.

A molecada ficava o dia inteiro pinçando pluma no chão, no telhado, nos galhos. E com a maior delicadeza, sob o olhar rigoroso das avós, para não sujar as fibras brancas, que não são bem brancas, realmente. É mais um off white, digamos, para usar uma denominação Nutella. Um tom entre o “Respiro na mata” e o “Caminho de gelo”, puxado para o “Leve ventania” ou o “Toque de frescor” da tabela de cores Suvinil, pra ser mais preciso.

E lá pelas tantas, quando o pessoal enchia o saco de separar minuciosamente a paina da semente, ia tudo misturado mesmo, mais semente do que paina, o que tornava o sono uma penitência por causa do roça-roça da cabeça com os grãos duros. Era como dormir sobre pedregulho. Deus abençoe o inventor do travesseiro de espuma.

Quando o outono termina, o rosa das paineiras vai embora, mas o espetáculo da natureza continua. Por incrível que pareça, é justamente nos períodos mais áridos do ano que o Cerrado revela toda a sua exuberância. Já mostrei aqui no Botoblog que é na adversidade da seca, em pleno outono-inverno, que esse bioma mostra a sua força e nos presenteia com uma impressionante explosão de cores.

Mas, até o próximo ato desse show, que começa daqui a pouco com os ipês, jacarandás e cega-machados, a gente continua apreciando por mais um tempo o reinado soberano da barriguda, meio tímida, meio espalhafatosa, como as torres traçadas por Gaudí.

*Gesner Duarte é professor do Curso de Jornalismo da UFMT-CUA e editor do Botoblog.

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